Narciso era um cara frustrado. Veja bem, a cada vez que conhecia alguém, obviamente perguntavam-lhe o nome. Se a pessoa fosse instruída, quando falasse logo iria pensar que era alguém narcisista e isso era o que Narciso menos é. Calmo, calmíssimo, Narciso explicava que a mãe tinha complexo de Édipo e torcia para que levassem como piada – o que não era.
Um dia, Narciso conheceu uma menina chamada Lolita. Lolita sofria do mesmo problema de Narciso – só que, no caso, ela era uma... Deixa para lá. Foi amor à primeira vista. Mas nada era fácil com eles. Narciso logo de começo cometeu o mesmo erro que faziam com ele – riu do nome da menina e logo a julgou. Fácil, pensava ele. E dissimulada. Tão rude! E egoísta, pensava a Lolita.
Ela não queria saber de Narciso, tímido que só, não tinha jeito de conversar com ela. Assanhadíssima, Lolita brincava com o Narciso. Usando vestido florido, ululava ao seu redor. Estivesse séria, seríssima, vestia alguma roupa sóbria e o fazia arrastar-se por um pouco de atenção. Narciso até gostava, ficava louco, louquíssimo! Será que conseguiria aprender a lidar com a Lolita?
Foi-se Narciso ler. Lia Dickens, lia Shakespeare, no fundo do poço, leuNietzsche e quase entrou em depressão. Então veio Lolita, sabendo que ele passara dias e dias lendo e trouxe-lhe gibis, trouxe-lhe Lewis Carrol e para compensar toda a alegria – Machado de Assis e seu eterno Dom Casmurro.Sentada ao lado de Narciso, lia para ele as tão famosas palavras:
- “Capitu, apesar daqueles olhos que o diabo lhe deu... Você já reparou nos olhos dela? São assim de cigana oblíqua e dissimulada. Pois apesar deles, poderia passar, se não fosse a vaidade e a adulação. Oh! A adulação!”
Enquanto lia, os olhos brilhavam e a expressão tomava as formas de sofrimento e de paixão. Não as de Lolita, as de Narciso. As palavras recém lidas ressoavam em sua mente... Oh! A adulação! Adulava a Lolita todos os dias, em todas as horas pensava nela. E a pequena Lolita sorria e passava os cabelos entre os dedos, entortando a cabeça de levinho olhava-o e o levava para o lago de Narciso. Lolita era o seu lago...
Sentia refletida no olhar de Lolita a sua enlevação, a sua dúvida e a sua aflição, nada característica do calmo, calmíssimo Narciso. O que lhe acontecera? Qual a causa da sua aflição? Narciso esperava um sim, um único sim da pequena Lolita. Ah, a Lolita que dançava em sua frente e logo depois deitava a cabeça em suas coxas e roçava os dedos nos seus pelos, grande provocadora Lolita. Narciso queria o sim dela, o sim que o libertaria e que tiraria dele o fardo de ser só um, para ser nós, eles, Lolita e Narciso, Narciso e Lolita.
- “Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou.”.
Narciso sentia como se o universo estivesse à espera daquele sim. O sim de Lolita, com toda a gravidade que a voz rouca dela carregava ao pedir que ele se ajeite que ela quer deitar-se com a cabeça no peito dele. Tão firme e tão leve, as mãos dela empurravam o cabelo do rosto, todo seu louro deslizando pela nuca e pousando, alguns fios, na mão perdida de Narciso. Olhava embevecido para o topo da cabeça de Lolita – era a única parte que podia enxergar naquela posição. E sentia-se afortunado só por isso.
Quando Lolita de supetão levantava e ia embora, ficava Narciso louco, preso em si. Ia ao trabalho e voltava para casa, na esperança de que Lolita aparecesse e a ela pudesse adular, adular e adular. Mas ela não aparecia e Narciso sentia-se “como quem partiu ou quem morreu”. Voltava-se para os livros, seus fiéis companheiros e lia, lia. Leu Platão, leu Neruda, leu os gibis que Lolita lhe levou – Ah, pequena Lolita! – e se encontrou em Machado de Assis, novamente. Dessa vez, sentia-se tão moribundo quanto Brás Cubas.
- “Não pude dormir; estirei-me na cama, é certo, mas foi o mesmo que nada. Ouvi as horas todas da noite. Usualmente, quando eu perdia o sono, o bater da pêndula fazia-me muito mal; esse tique-taque soturno, vagaroso e seco parecia dizer a cada golpe que eu ia ter um instante menos de vida. Imaginava então um velho diabo, sentado entre dois sacos, o da vida e o da morte, e a contá-las assim: - Outra de menos...”.
Tanto a demora de Lolita de voltar que nem contar mais Narciso conseguia. Não conseguia contar mais o tique-taque, nem quantos cigarros fumava, nem quantas vezes tomava banho na semana. A irmã de Narciso apareceu e disse que iria ligar para que a mãe deles aparecesse se ele continuasse assim. Ao lembrar-se do pequeno complexo da mãe, Narciso preferiu tomar banho por si só. E limpar a casa. Enquanto limpava, achou uma fita de cabelo de Lolita, os gibis, o suco que ela gostava – agora azedo – todos os livros que lera depois de conhecê-la e todos os livros que adquiriram um novo significado depois dela.
Poderia marcar o tempo assim: antes de Lolita, depois de Lolita. O a.L, como via agora, era opaco. Não tinha nada demais, normal, tão normal. Já o d.L era colorido, iluminado, melancólico – mas com uma melancolia romântica, como a melancolia de Vinícius de Moraes. Sentia vontade de escrever poesia, mas, assim que pegou a caneta, olha quem aparece!, a pequena Lolita.
Ela trouxe junto consigo um pouco de fantasia, um pouco de ilusão, um pouco de alegria e um monte de esperança. Havia J.K Rowling, havia Chico Buarque, havia Ana Maria Machado, havia Anne Frank. Encontravam-se nas palavras de Caetano que tocava no rádio da sala:
- “[...] E vê só que cilada o amor me armou
Eu te quero (e não queres) como sou
Não te quero (e não queres) como és
Eu te quero (e não queres) como sou
Não te quero (e não queres) como és
Ah! Bruta flor do querer
Ah! Bruta flor, bruta flor [...]”
Ah! Bruta flor, bruta flor [...]”
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