30/10/2013

Personagens

Narciso era um cara frustrado. Veja bem, a cada vez que conhecia alguém, obviamente perguntavam-lhe o nome. Se a pessoa fosse instruída, quando falasse logo iria pensar que era alguém narcisista e isso era o que Narciso menos é. Calmo, calmíssimo, Narciso explicava que a mãe tinha complexo de Édipo e torcia para que levassem como piada – o que não era.
Um dia, Narciso conheceu uma menina chamada Lolita. Lolita sofria do mesmo problema de Narciso – só que, no caso, ela era uma... Deixa para lá. Foi amor à primeira vista. Mas nada era fácil com eles. Narciso logo de começo cometeu o mesmo erro que faziam com ele – riu do nome da menina e logo a julgou. Fácil, pensava ele. E dissimulada. Tão rude! E egoísta, pensava a Lolita.
Ela não queria saber de Narciso, tímido que só, não tinha jeito de conversar com ela. Assanhadíssima, Lolita brincava com o Narciso. Usando vestido florido, ululava ao seu redor. Estivesse séria, seríssima, vestia alguma roupa sóbria e o fazia arrastar-se por um pouco de atenção. Narciso até gostava, ficava louco, louquíssimo! Será que conseguiria aprender a lidar com a Lolita?
Foi-se Narciso ler. Lia Dickens, lia Shakespeare, no fundo do poço, leuNietzsche e quase entrou em depressão. Então veio Lolita, sabendo que ele passara dias e dias lendo e trouxe-lhe gibis, trouxe-lhe Lewis Carrol e para compensar toda a alegria – Machado de Assis e seu eterno Dom Casmurro.Sentada ao lado de Narciso, lia para ele as tão famosas palavras:
- “Capitu, apesar daqueles olhos que o diabo lhe deu... Você já reparou nos olhos dela? São assim de cigana oblíqua e dissimulada. Pois apesar deles, poderia passar, se não fosse a vaidade e a adulação. Oh! A adulação!”
Enquanto lia, os olhos brilhavam e a expressão tomava as formas de sofrimento e de paixão. Não as de Lolita, as de Narciso. As palavras recém lidas ressoavam em sua mente... Oh! A adulação! Adulava a Lolita todos os dias, em todas as horas pensava nela. E a pequena Lolita sorria e passava os cabelos entre os dedos, entortando a cabeça de levinho olhava-o e o levava para o lago de Narciso. Lolita era o seu lago...
Sentia refletida no olhar de Lolita a sua enlevação, a sua dúvida e a sua aflição, nada característica do calmo, calmíssimo Narciso. O que lhe acontecera? Qual a causa da sua aflição? Narciso esperava um sim, um único sim da pequena Lolita. Ah, a Lolita que dançava em sua frente e logo depois deitava a cabeça em suas coxas e roçava os dedos nos seus pelos, grande provocadora Lolita. Narciso queria o sim dela, o sim que o libertaria e que tiraria dele o fardo de ser só um, para ser nós, eles, Lolita e Narciso, Narciso e Lolita.
- “Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havio sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou.”.
Narciso sentia como se o universo estivesse à espera daquele sim. O sim de Lolita, com toda a gravidade que a voz rouca dela carregava ao pedir que ele se ajeite que ela quer deitar-se com a cabeça no peito dele. Tão firme e tão leve, as mãos dela empurravam o cabelo do rosto, todo seu louro deslizando pela nuca e pousando, alguns fios, na mão perdida de Narciso. Olhava embevecido para o topo da cabeça de Lolita – era a única parte que podia enxergar naquela posição. E sentia-se afortunado só por isso.
Quando Lolita de supetão levantava e ia embora, ficava Narciso louco, preso em si. Ia ao trabalho e voltava para casa, na esperança de que Lolita aparecesse e a ela pudesse adular, adular e adular. Mas ela não aparecia e Narciso sentia-se “como quem partiu ou quem morreu”. Voltava-se para os livros, seus fiéis companheiros e lia, lia. Leu Platão, leu Neruda, leu os gibis que Lolita lhe levou – Ah, pequena Lolita! – e se encontrou em Machado de Assis, novamente. Dessa vez, sentia-se tão moribundo quanto Brás Cubas.
- “Não pude dormir; estirei-me na cama, é certo, mas foi o mesmo que nada. Ouvi as horas todas da noite. Usualmente, quando eu perdia o sono, o bater da pêndula fazia-me muito mal; esse tique-taque soturno, vagaroso e seco parecia dizer a cada golpe que eu ia ter um instante menos de vida. Imaginava então um velho diabo, sentado entre dois sacos, o da vida e o da morte, e a contá-las assim: - Outra de menos...”.
Tanto a demora de Lolita de voltar que nem contar mais Narciso conseguia. Não conseguia contar mais o tique-taque, nem quantos cigarros fumava, nem quantas vezes tomava banho na semana. A irmã de Narciso apareceu e disse que iria ligar para que a mãe deles aparecesse se ele continuasse assim. Ao lembrar-se do pequeno complexo da mãe, Narciso preferiu tomar banho por si só. E limpar a casa. Enquanto limpava, achou uma fita de cabelo de Lolita, os gibis, o suco que ela gostava – agora azedo – todos os livros que lera depois de conhecê-la e todos os livros que adquiriram um novo significado depois dela.
Poderia marcar o tempo assim: antes de Lolita, depois de Lolita. O a.L, como via agora, era opaco. Não tinha nada demais, normal, tão normal. Já o d.L era colorido, iluminado, melancólico – mas com uma melancolia romântica, como a melancolia de Vinícius de Moraes. Sentia vontade de escrever poesia, mas, assim que pegou a caneta, olha quem aparece!, a pequena Lolita.
Ela trouxe junto consigo um pouco de fantasia, um pouco de ilusão, um pouco de alegria e um monte de esperança. Havia J.K Rowling, havia Chico Buarque, havia Ana Maria Machado, havia Anne Frank. Encontravam-se nas palavras de Caetano que tocava no rádio da sala:
- “[...] E vê só que cilada o amor me armou
Eu te quero (e não queres) como sou
Não te quero (e não queres) como és
Ah! Bruta flor do querer
Ah! Bruta flor, bruta flor [...]”


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